quarta-feira, 24 de junho de 2009

Adaptações, até onde pode ir a infidelidade?

Todo mundo sabe, comenta, refuta, endossa, pergunta, reclama, sobre o perrengue eterno entre livros e suas adaptações cinematográficas. É um fato consumado. Mostre-me qualquer adaptação literária (falando especificamente de um romance bom, por favor – pulp de banca é OUTRA história que eu conto depois, ou não) que não recebeu pelo menos uns cinco comentários do tipo "ah, o livro é melhor", e eu lhe mostro uma mentira. É chato, é clichê, e você sabe que não tem como fugir disso; o livro sempre é melhor.

Nessas, entrar no papo de que são duas mídias distintas, com estruturas narrativas distintas, é meio punheta. Não que não seja verdade. Porque é. Mas também não é desculpa para muito aborto nascido por aí, e entrar nesse mérito agora é esticar a discussão ad infinitum. Coisa muito técnica, às vezes, e muito teórica nas outras.

Só para brincar na borda, um romancista tem uma liberdade expansiva que um cineasta geralmente não tem. É só pensar em quantos livros você já viu por aí com 400, 500 páginas (ou mais), e em quantos filmes tem uma metragem de quatro ou cinco horas. Porque o ditado nos engana ou, pelo menos, não é suficiente: uma imagem vale mais do que mil palavras; mas mil palavras intensas, numa narrativa única, precisa de muito mais imagens para equivaler. Mas eu realmente não quero me delongar aqui.

O ponto crucial, talvez, seja um pouco mais profundo. Não sei.

O grande trunfo do livro, aquilo que talvez provoque toda fúria incontida (embora sempre previsível) dos leitores apaixonados, é óbvio. O escritor não força a história para você; apenas a narra, com mais ou menos acerto, e o resto fica por conta do próprio leitor. E, cá entre nós, não é que ele não force a história por altruísmo. Simplesmente não consegue. Ele pode te indicar a música que acha cabível em um determinado momento da história, mas não colocá-la para tocar no rodapé da página como, metaforicamente falando, um diretor faria. Então o leitor vai lá e cobre essas lacunas, e cria dentro da cabeça um modelo pré-determinado da história, ainda que muito canhestramente. Quando acaba por ver uma adaptação cinematográfica dessa história, o modelo narrado em filme e a pré-concepção criada pelo leitor se chocam, às vezes com similaridades, às vezes com diferenças irreconciliáveis.

Dentro da adaptação, ainda existe, sempre, ou em pelo menos 90% dos casos, acho, outro problema: algo tem de ser cortado. Pouquíssimas adaptações escapam desta outra sina (já ouvi dizer, embora não o tenha lido ainda, que a adaptação dos irmãos Coen para o velho Cormac de Onde os Fracos não têm vez, é tão fiel, que se tornou objeto de uma pequena discussão entre amigos na entrega do Oscar; uma especulação onde se dizia que o filme não merecia realmente o prêmio de Melhor Roteiro Adaptado). Isso se torna um problema particularmente sensível (o corte) se o cineasta, seja por gosto pessoal ou por necessidade (sendo geralmente a segunda), remove da montagem final justamente aquela parte que o leitor-espectador-crítico admirava no romance.

Claro que estou me apegando à ponta do iceberg. O tamanho que essa discussão pode adquirir (especialmente se você a tiver numa mesa de bar; acredite!) é imenso. Nem tente. Sério.

Claro que existem boas adaptações literárias também (O Poderoso Chefão e 2001: Uma Odisséia no Espaço não contam, por motivos distintos). Até pensei em citá-las, mas com certeza ia me esquecer de alguma e me sentir mal depois.

Vou me ater as duas então que eu considero quase geniais, por ser o que eu vou chamar de, vai lá, "Mockadaptações” *. Naked Lunch (eu me recuso a chamá-lo pelo título em português, nada pessoal) é um filme de David Cronenbergh baseado no livro homônimo de William Burroughs. E na sua biografia. E em experiências com drogas. E com pirações típicas do cineasta que nada tem a ver com Burroughs, mas que tem MUITO a ver com Burroughs. É uma obra de arte, no duro.

Outro, Kafka, consegue ser uma mockadaptação ainda maior que Naked Lunch. Basicamente, o que Steven Soderbergh fez foi pegar o autor Franz Kafka em algum momento impreciso da sua biografia (mais ou menos entre os primeiros contos, a tuberculose e o ápice de sua criação) e jogá-lo dentro de um pesadelo kafkaniano, num processo de metalinguagem que é sutil, inteligente e, por que não, divertido.

Não acho que a mockadaptaçãos seja o único caminho a se seguir, algo à lá "salvação da literatura no cinema". Pelo contrário. A verdade, aqui entre nós, é que não existe salvação. Não há o que salvar, seja nos filmes, seja nos romances. Enquanto houver um idiota escrevendo, um dirigindo, e dois lendo ou assistindo, existirá obras geniais, ruins, incompreendidas. Não é uma questão de "o que é bom", e sim de "o que eu gosto". Sempre é.

Então leia o livro. Veja o filme. Faça ambos.

E me conte depois qual é melhor.

* Uma brincadeira com o termo mockumentary, que designa documentários feitos em cima de temas e/ou personagens forjados (não, não estou falando do Michael Moore). Na verdade, são filmes 100% ficcionais, mas feitos dentro dos moldes de um documentário. Por exemplo, This is Spinal Tap! de Rob Reiner; Zelig, de Woody Allen ou a comédia recente Borat.

** Texto concebido por Rafael Ucha Campos.

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